quarta-feira, 5 de abril de 2017

Neoliberalismo de Temer é o saudosismo da selvageria

Vontade é uma disposição íntima para realizar determinada ação ou omissão. A vontade somente se concretiza materialmente se encontradas, externamente ao agente, as condições ideais para tal. Poder, portanto, é a capacidade de produzir tais condições ideais de materialização da vontade. Em outras palavras, poder é a capacidade decisória unilateral de realização da vontade. Quanto maior a possibilidade de concretização das vontades do agente, maior o seu poder.
No estado de natureza, o poder de cada indivíduo é quase ilimitado, somente encontrando barreiras na extensão da própria força física e na capacidade de resistência do outro. Assassinato, estupro e roubo, para ficar nesses exemplos, integram o rol de ações inerentes à natureza animal. Um leão desafiante, ao vencer e, ocasionalmente, matar o macho alfa anterior, tomará pela força a propriedade do bando e passará a ter preponderância sexual sobre todas as fêmeas do grupo. Para iniciar seu reinado, matará todos os filhotes do bando. As fêmeas não somente aceitarão a nova liderança e a matança dos próprios filhotes, como entrarão imediatamente no cio, para satisfazer o novo rei e lhe conceder os próprios descendentes. Os leões não dominantes, para dar vazão ao instinto de reprodução, estuprarão eventualmente as fêmeas desgarradas, cujos filhotes serão aceitos no bando pela suposição de que são crias do macho alfa. Todas essas ações – assassinato, roubo, infanticídio e estupro – não constituem, obviamente, crimes na natureza, mas contingências naturais absolutamente normais e, segundo biólogos, saudáveis para o equilíbrio natural e para a saúde genética.

No estado de natureza, pois, se o indivíduo for suficientemente forte, sua vontade se imporá sobre a dos outro. A imposição de uma vontade sobre a outra é justamente o que se chama “poder”.
Quando o ser humano passou a viver em sociedade, um dos principais motivos que o conduziu a aceitar reduzir seu próprio poder individual, se não o principal, foi justamente a intenção de reduzir o poder individual do outro e selecionar, por via da ação cultural, as ações moralmente aceitáveis no seio da coletividade. Em benefício de todos, ações que eram naturais em termos de ação individual, passaram a ser criminalizadas. Resumindo: desde o início, a experiência social não criou o Estado para ampliar o poder individual, mas para reduzi-lo. O Estado serve, ou deveria servir, ao propósito de mitigar a capacidade do indivíduo mais forte de ferir o direito alheio à vida, à integridade física e à propriedade.
Nesse sentido, a cantilena neoliberal de redução do Estado significa, nada mais, nada menos, do que diminuir o poder estatal de interferir na ação que um indivíduo exerce sobre o outro. Mais especificamente: visa ao retorno ao estado de natureza.
O neoliberalismo é sinônimo, assim, de saudosismo da selvageria, da barbárie e da lei do mais forte que imperava no estado de natureza. O neoliberalismo, em essência, é um libelo contra o que se entende por humanidade, contra tudo o que nos diferencia da animalidade selvagem. É uma ação não-cultural, portanto.
A palavra liberalismo provêm de “liberdade”. Liberdade, no sentido sofista pretendido pelo neoliberalismo, seria representado pela expressão francesa laissez faire, com significado aproximado de “faça e deixe fazer”. Seu paroxismo conduziria à possibilidade de escravização do ser humano, resultado que, durante milhares de anos, já foi considerado normal pela humanidade na luta pela sobrevivência. Na verdade, materialmente falando, a escravidão já está de volta em diversas regiões do planeta, agora caracterizado pelo pagamento de salários aviltantes e sonegação dos direitos humanos mais básicos, como o do respeito à dignidade da pessoa. Não há mais necessidade de grilhões, pois a falta de dinheiro impede a mobilidade; capitães do mato são dispensáveis, pois, nos setores sem especialização, há fartura de mão de obra sobressalente para os que deixam de retornar ao trabalho; senzalas são obsoletas, as favelas e outros locais de submoradia tomaram esse lugar.
Liberdade de verdade, no entanto, somente é possível através da sociedade humana organizada, ou seja, por meio da existência de um Estado forte capaz de inibir a vontade individual. Parece um contrassenso, mas não é. Liberdade total corresponde à possibilidade de poder absoluto individual de decidir o que, quando e como fazer o que se deseja fazer. É o leão matando os filhotinhos para assumir o poder. É a natureza em estado puro, selvagem e indisciplinada. No caso do ser humano, é a possibilidade de crianças de sete anos submetidas a jornadas de 12 horas, como já existiu na História.
A liberdade do ser humano cultural é a liberdade responsável. Trata-se de limitar o interesse individual ao interesse da coletividade. Tal limitação somente pode ser efetiva se imposta pela força do império estatal. Justamente em função da necessidade de estabelecer a ideia comum de liberdade responsável, o neoliberalismo está naufragando, ou já naufragou, nos países centrais, somente ainda insistindo em seus efeitos nefastos nos periféricos.
No que concerne ao Brasil, o neoliberalismo, praticado na gestão do PSDB no governo federal e que agora retorna travestido de governo golpista de Michel Temer, mas com o mesmo PSDB controlando as marionetes nos bastidores obscuros do poder, simboliza o retorno da opressão, da sonegação dos direitos trabalhistas mais básicos, da revogação da Lei dos Sexagenários e do ataque aos cofres públicos pelos mais poderosos, beneficiados por juros estratosféricos.
No limite, se não refreado a tempo, a fraude do neoliberalismo conduzirá à redução de porções cada vez maiores do poder do Estado. Chegará o dia em que o leão desafiante matará o líder, afugentará os outros machos, assassinará os filhotes e estuprará as leoas e ninguém poderá reclamar.
Afinal, faça e deixe fazer.

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