sábado, 27 de agosto de 2016

Política e manipulação da vontade II


No ano de 2013, alcançando 42% do total de votos, Angela Merkel consegue seu terceiro mandato consecutivo como mandatária da Alemanha. A chanceler integra um partido conservador, algo como o PSDB daqui. Os conservadores estão no poder alemão desde 1990, ou seja, há 23 anos consecutivos.
Nos Estados Unidos, em vários momentos da história os partidos Democrata ou Republicano permaneceram longos períodos no poder, através de reeleições sucessivas, embora com presidentes diferentes.
Nesses países não se imagina que a ausência de rotatividade partidária no poder é “antidemocrática” ou que os partidos possuam um projeto de eternização no poder através do qual tentam “manter-se no poder a qualquer custo”.

Primeiro, porque criticar um partido político, de forma pejorativa, sob o argumento de que tal partido possui um projeto de poder revela a profunda ignorância política de quem o faz. Afinal, os partidos políticos foram institucionalizados nas diversas sociedades humana justamente para atingir esse fim. Todo partido político representa uma parcela da população com identidade ideológica sobre o tipo de sociedade que deseja. Essa parcela tende a se sentir representada pelo partido que possui projeto de poder que possua afinidade com sua aspiração, sendo essa a razão de votar nele. Consequência lógica disso é que todo partido almeja a perpetuação no poder pois considera, apoiado no voto dos eleitores, que seu projeto de sociedade é superior aos demais. Numa democracia, a perpetuação no poder depende, obviamente, da aprovação popular estabelecida nas urnas. Se alçado e mantido no poder através desse instrumento de escolha, livre de vícios comprovados, a democracia foi assegurada, independentemente do número de reeleições do partido eleito.
Segundo, porque subsiste nos países mencionados, com democracia mais antiga e, por isso mesmo, mais avançada e sólida, um conceito que por aqui ainda parece provocar espanto em alguns: o princípio que confere a cada cidadão o direito a um voto de igual valor. Desde que inexista algum vício comprovado nesse princípio de igualdade entre os eleitores, o processo democrático é aceito naturalmente, com a maior parte da população escolhendo o candidato que pareça se encaixar mais nos seus anseios e a menor parte resignando-se à escolha.
Vale destacar que as democracias maduras possuem, ao lado do sufrágio universal, outros instrumentos de proteção das minorias contra a tirania da maioria, possibilidade sempre presente. O principal desses instrumentos é a Constituição, secundada pelo poder judiciário.
Constitui, para dizer o mínimo, falta de maturidade política creditar a vitória de determinado partido aos interesses individuais de quem vota, algo como, por exemplo, qualificar de “voto de cabresto” os votos de quem recebe bolsa-família. Ora, esse é justamente o fundamento, não simplesmente do voto, mas de toda e qualquer ação humana: a auto-proteção e a proteção das pessoas amadas.
Partindo da noção de que não existe, ao menos em princípio, o que se possa denominar propriamente de “interesse coletivo”, pois a expressão representaria apenas a soma dos difusos interesses individuais comuns, tem-se que é justamente a reunião das diversas massas distintas de interesses individuais que, primeiro, fundamenta o surgimento do que chamamos de coletividade ou sociedade, movidos por um egoísmo inicial que só posteriormente enseja a noção de pertencimento que passa a orientar a ação social no sentido de tolerar o pensamento contrário. Segundo, justifica a democracia, entendida como modo civilizado de mediação dos diversos interesses, primeiro individuais e depois coletivos, conflitantes, sem o que somente restaria a solução pela violência da guerra civil. Terceiro, orienta e confere sentido ao voto de cada cidadão, que vota segundo a própria noção utópica de sociedade desejada, que embute necessariamente seus desejos individuais, os quais, agrupados ideologicamente, se tornam desejos coletivos.
Dados esses elementos, tem-se que votar no partido político que mais se identifica com os próprios anseios individuais não constitui exclusividade dos pobres.
A soma dos interesses individuais da classe rica, por exemplo, fará com que seus votos sejam direcionados ao partido político que se proponha a manter o sistema financeiro movido pela ótica da valorização das fortunas, mantendo-as, intactas ou aumentadas, nas mãos de quem já as possui. A política de juros altos, por exemplo, é um dos modos mais comuns de manutenção e aumento das riquezas familiares. Não é sem razão, portanto, que sucessivos governos, de todas as cores e partidos, mantenham inexplicavelmente os juros em percentuais estratosféricos desde priscas eras.
A classe média, por sua vez, é integrada, em grande parte, por pessoas movidas pelos afetos da inveja, subserviência e ambição. Inveja da classe rica, subserviência aos membros da classe rica e ambição de integrar a classe rica. Por conta disso, historicamente a classe média serve de apoio aos propósitos da classe rica, não se identificando com a classe a qual de fato possui maior proximidade, que é a classe pobre, esquecidos de que, em todo solavanco da economia, grandes porção da classe média despenca na escala sócio-econômica e se equipara economicamente à classe pobre. Assim, essa classe tende a votar no partido político preferido pela classe alta, opção que se acentua se dessa escolha política de bajulação decorrer o sucesso de um projeto de manutenção de tributação baixa, garantindo acréscimo financeiro que permita adquirir bens de consumo em moda na classe alta, manter suas viagens internacionais, empregados domésticos e outras frivolidades típicas da classe. Deveriam saber que os membros da classe alta, tomando ciência de que os signos de sua classe foram saqueados pela classe média, imediatamente alteram suas representações simbólicas, horrorizados. A classe média pode rejeitar a classe pobre, mas é igualmente rejeitada pela classe que inveja. E ainda dizem que a luta de classes está extinta...
Sendo assim, considerando que a sociedade é movida fundamentalmente por um princípio de egoísmo, nada mais natural do que presumir que a classe pobre irá votar no partido cujo projeto de governo leve em consideração a manutenção ou ampliação da assistência social, melhoria da educação e da saúde públicas e da oferta de emprego e renda, passando, minimamente, uma maior sensação de segurança alimentar e habitacional.
De pouco vale tapar os olhos: é assim que funciona a sociedade, é desse modo que as pessoas se movimentam politicamente.
Não aceitar esse jogo de interesses quando a balança se inclina favoravelmente aos pobres, usando de artifícios retóricos como redutores da validade ou importância do voto dos pobres constitui, não somente uma explícita demonstração antidemocrática, mas, acima de tudo, a materialização da tentativa de impor uma espécie de elitismo denominada plutocracia (governo dos ricos).
Abra-se aqui parênteses para destacar que a presunção antes mencionada, relativa ao direcionamento do voto dos pobres, somente não está absolutamente correta no que concerne à sua reprodução material, real, em virtude da massiva influência da indústria cultural, que altera insidiosamente o espírito do eleitor, fazendo-o se inclinar por opções contrárias ao seu interesse, movido pela ilusão de que os interesses propagandeados equivalem aos seus. Somente ocasionalmente, como parece ter ocorrido recentemente no Brasil, os pobres escapam dessa armadilha discursiva e, de fato, escolhem partidos mais inclinados à solução das questões sociais.
No caso da Alemanha de Angela Merkel, é interessante destacar que esse país possui um guarda-chuva assistencial com maior variedade de espécies assistenciais e com valores bem superiores aos pagos no Brasil, inclusive seguro-desemprego e algo similar ao bolsa-família, chamado “prestação de recursos mínimos”. Diferentemente do bolsa-família brasileiro, a ajuda assistencial alemã, apesar de possuir valor mensal muitas vezes superior, sequer exige vinculação da percepção do benefício à manutenção dos filhos na escola. Ou seja, mais direito com menos obrigação.
Ainda assim, quem, em sã consciência política, seria capaz de afirmar que essa pletora de benefícios é a razão justificadora da manutenção de Merkel no poder por tantos anos?
Todavia, há no Brasil uma parcela da população brasileira, beneficiada pelo acesso à educação e à cultura historicamente sonegadas à população em geral, que pretende ser iluminada, com mais conhecimento e sabedoria política do que a ralé. Por isso, nega valor ao voto dos pobres e miseráveis, sob o pálio de serem eles facilmente manipuláveis pelos políticos. Nesse caso, parece subjazer um anseio por outra espécie de poder, a aristocracia (governo dos melhores), que tampouco possui índole democrática.
A manipulação da vontade do ser humano obviamente é possível, isso é inelutável. Constitui, porém, sobeja ingenuidade, incrementada por grande porção de vaidade e orgulho, considerar que tal “lavagem cerebral” somente é passível de ocorrer com os desfavorecidos.
Pelo contrário, é possível uma interpretação diametralmente oposta, no sentido de que é a classe média a mais suscetível de ser transformada em massa de manobra da super-elite. Isso porque seus integrantes tendem a ingenuamente acreditar que seus interesses são idênticos aos interesses dos bilionários. Esquizofrênica, a classe média briga pela eternização desses valores, cegada pela ilusão pueril de que um dia, talvez, quem sabe, se Deus ajudar, obterá as mesmas graças. Olvida-se de que a estrutura da sociedade é montada de tal forma que a mobilidade social é na prática uma impossibilidade, correspondendo à sorte de ganhar uma loteria. As exceções existem, claro, mas não como aberturas ao movimento social, senão como justificadoras da regra da imobilidade.
Movida por esse tipo de ingenuidade, acrescido do fascínio infantil pelo consumismo frívolo, pela vontade de aquisição de cada novo gadget eletrônico, exibidos como ícones de sucesso pessoal e interminavelmente trocados por outros ultranovos, torna-se presa fácil do discurso hegemônico da elite. Por conta disso, a classe média personifica com certo orgulho o papel de boba da corte no castelo da elite. Que outra explicação haveria para o desejo fremente do desnecessário? Para o fetiche do objeto como revelação do valor pessoal? Para a adesão incondicional aos interesses de uma classe que historicamente a sodomiza politicamente? Para a ausência de reflexão de natureza egoística sobre a possibilidade de necessitar dos benefícios sociais destinados à classe pobre, provenientes dos princípios de generosidade social que somente encontra voz e eco nos partidos cuja ideologia é conceituada como "de esquerda"? Outra não há, senão a manipulação mental produzida pela propaganda do discurso de dominância contida nos produtos da indústria cultural, cujo consumidor por excelência é a classe média.
O processo de inculcação ideológica é sutil, se inicia nas primeiras falas, na intimidade dos lares, reproduzido pelas pessoas nas quais o ser humano mais confia no começo da vida: os pais. Por conta disso, as pessoas tendem a acreditar que, de fato, tudo que ela pensa constitui pensamento original seu, de sua autoria, pensado de forma racional, crítica e livre. É um processo que foi descrito por Platão em sua alegoria da caverna, na qual somente as sombras da realidade eram conhecidas pelos habitantes, motivo pelo qual as sombras eram tidas como a própria realidade material. Os habitantes, mesmo após apresentados à realidade verdadeira por um deles, que havia descoberto a saída da caverna e visto a luz do sol, recusavam-se a acreditar na realidade. Preferiam as sombras.
Ninguém está a salvo dessa manipulação, mas há um paliativo e talvez até cura: intensa busca de conhecimento e cultura diversificados. Dito de outro modo: ninguém deixará de enxergar somente sombras se descuidar do hábito de ler intensamente leituras adultas de profundidade, não religiosas, sempre variando os pensadores para ter acesso às diversas formas de reflexão sobre a realidade.
Destaquei a leitura não religiosa por entender que esse tipo de leitura é também vocacionada para a manipulação da vontade, mas não irei aprofundar esse assunto aqui. Apenas ressalto que, formada a consciência crítica, que é um antídoto eficaz, também essa leitura se torna possível sem efeitos colaterais daninhos.
Somente escapando da escuridão, somente obtendo uma visão mais clara acerca dos interesses e das fragilidades humanas que movimentam e sempre movimentaram a história, torna-se possível discernir entre os valores verdadeiros e essenciais, que devem ser preservados, e os falsos valores a serem descartados.
Ainda assim, porém, para alguns jamais será possível desacreditar completamente de que a caverna não representa o todo possível e que as sombras não são a realidade.
Muitas vezes a ilusão é mais confortável e aconchegante do que a realidade.


Observação: republicação, com adaptações, de texto originalmente escrito em setembro de 2013.

Nenhum comentário :

Postar um comentário