terça-feira, 17 de maio de 2016

As ilusões construídas por Jabor


No Estadão de hoje (17/5), o ex-cineasta Arnaldo Jabor comete um texto intitulado "As ilusões perdidas". Trata-se de um rebotalho, um vomitório, composto por um mix de egolatria, iconoclastia e aparente frustração inconfessa acerca de si mesmo.
Nele, como de hábito, Jabor se autoidolatra, coisa que muito aprecia fazer, simultaneamente à pretensão de desqualificar toda e qualquer mente que erga bandeiras em prol do movimento político de esquerda. Dada a excepcional qualidade de várias das mentes que pensam a esquerda, como Noam Chomsky, Zygmunt Bauman, Marilena Chauí, Fernando Morais, Luís Fernando Veríssimo, Fábio Konder Comparato, Bandeira de Mello, Ladislau Dowbor, Marcio Porchman, David Harvey, Slavoj Zizek e inúmeros outros, a tarefa jaboriana não é nada fácil. Hércules ficaria invejoso.
Ainda em decorrência do alto nível dos intelectuais mencionados, fora os que foram omitidos, é também possível mensurar a extensão da arrogância supostamente intelectual de Arnaldo Jabor. É quase similar a do louco que pretende ser Bonaparte, nome que, aliás, lhe cairia muito bem: "bom à parte".

Bem, talvez Jabor aprecie os escritores da direita, como Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino, vá saber os gostos complexos dessa mente privilegiada...
Claro que Jabor não pensa, de fato, assim. Não creio seja capaz de desprezar pensamentos dessa magnitude intelectual. Discordar, antagonizar, sim, mas deixar de perceber a inteligência onde ela está, não. Embora não seja isso tudo que alardeia de si mesmo, inegavelmente ele não é um idiota, não na acepção correta da palavra. Ele está jogando para a plateia, fazendo o jogo dos patrões, a Globo, Estadão e outros veículos da grande imprensa. É pura e simples desonestidade intelectual.
O texto é uma variação de outros, anteriores. Trata-se, em resumo e no fundo, de alardear aos quatro ventos que já foi militante ativo de esquerda, comunista até a raiz dos cabelos, o que imagina lhe traria alguma isenção no julgamento dos antigos colegas militantes, e que, em dado momento, recebeu a luz da revelação política, através da qual descobriu que a política de verdade é representada pela direita, convertendo-se, em lágrimas, a essa verdade inescapável. Ao mesmo tempo, desanca os que permaneceram na esquerda política, que são por ele designados de ignorantes, dos quais diz serem "formados por uma empada de retalhos ideológicos mal lidos na Guerra Fria".
Empada de retalhos ideológicos? Bela criação mental. Então é essa a formação intelectual dele próprio? Afinal, ele estava no mesmo movimento... Não, claro que não. Jabor salva-se a si próprio dessa malformação congênita. Diz que, já naquele tempo, possuía intelectualidade superior, tanto que não conseguia ser compreendido pelos companheiros, dada a sua fala bem mais complexa. Os colega, irados pelo reconhecimento da própria ignorância, colocavam-lhe o dedo na cara, fazendo-o vomitar atrás da porta... Exagero? É pouco para tanta fantasia jaboriana.
No fundo, o que Jabor confessa, mesmo, de verdade, é que jamais integrou a esquerda. Era apenas um burguesinho infiltrado, que logo percebeu que estava deslocado e deu no pé. Acabou-se a pretendida "imparcialidade" na crítica, sobra um espião desqualificando o espionado. Muito apropriado, nesses tempos de Sérgio Moro e vazamentos seletivos.
E aí vem o único parágrafo importante do texto, sua razão de ser: negar a existência do diabo. Sim, pois todos sabemos que é esse o maior truque de Lúcifer: disseminar a ideia da própria inexistência, para assim conseguir trabalhar em paz.
Jabor desdenha, com sarcasmo e ironia, sobre as discussões que envolviam a apreciação da realidade brasileira, sempre fundados na crítica à burguesia, ao imperialismo e ao latifúndio e na proteção ao proletariado e ao campesinato. Para ele, tudo fantasia e teoria da conspiração. Bingo! Jabor transforma em ilusão o que é a realidade factual, visível, palpável. Claro, seu alvo não é nenhum intelectual, é o povo. Trata-se de disseminar um vírus mental, um meme: não existe luta de classe, não existe confronto entre ricos e pobres, basta trabalhar com vontade que todos são capazes de viver dignamente e, talvez até, enriquecer.
É como diz o "presidente" Temer: esqueça a crise, trabalhe! Perfeito... para o sistema, nem tanto para o povo.
Jabor acusa "esse governo que sai" de ser rançoso por querer retornar à década de 1960, com seus delírios românticos, quando, e o texto nesse ponto exala uma certa satisfação, foram esmagados pela ditadura. Jabor saboreia ao afirmar que esse grupo "quebrou a cara de novo".
Então, isso é efetivamente uma crítica? Ou seria apenas a exteriorização da satisfação do predador em capturar a presa e devorá-la?
Por que razão uma utopia de justiça social (pois é isso que subjaz à "denúncia" de Jabor de que se tratava de delírios românticos) deve ser criticada negativamente?
O fato desse delírio romântico, dessa utopia, ser esmagada por uma ditadura antidemocrática, então, é motivo de júbilo? Ou, quem sabe, Jabor esteja sugerindo que deveriam ter receado, temido, retornar com essas velhas e murchadas bandeiras socializantes?
Jabor não deve apreciar as sociais-democracia nórdicas, pelo visto. Seu ídolo político deve ser, como parecer ser o de vários escritores de textos da grande mídia, os Estados Unidos da América, no qual, todos sabemos, não existe desigualdade social, não existe miséria, a saúde é para todos, a educação também, a polícia respeita as minorias e a população adora estrangeiros que tentam ficar no país.
E é isso mesmo, pois em seguida diz Jabor que adora o liberalismo. Mas, espera aí, não eram os esquerdistas os saudosistas de uma política ultrapassada? Os rançosos que desejam retornar cinquenta anos no tempo?
Jabor, acorda: o liberalismo que você deseja já foi experimentado em grau máximo a partir de meados do século XIX, cento e cinquenta anos atrás. O resultado foi a exploração sem limites do trabalho humano, inclusive infantil. As carvoarias que hoje flagramos, com condições degradantes de trabalho, são moleza perto do que o ultraliberalismo já autorizou de forma lícita.
Jabor finaliza o texto acusando o governo do PT de patrimonialista, e portanto corrupto, e pela crise econômica. Para a autopromovida mente complexa de Jabor, o silogismo é bastante raso: premissa maior, havia uma crise econômica e há corrupção; premissa menor, o PT estava no governo; logo, conclusão, o PT é o culpado por ambas. É isso, aí e ponto final.
Quanto à corrupção, Jabor não discorre sobre suas implicações sistêmicas, sobre a necessidade de formar o tal do presidencialismo de coalizão em nome da governabilidade. O patrimonialismo de que você fala, Jabor, é efetivamente do PT ou dele exigida, pelo PMDB, pelo PP e pelos demais que lhe dão sustentação? Esse patrimonialismo, Jabor, não esteve também a serviço do PSDB, na era FHC? Foi o PT quem criou, é isso mesmo, mente complexa?
Tampouco fala, e jamais falará, sobre a corrupção empresarial instituída e que atravessa décadas, muito menos sobre o caso escabroso do envolvimento da Rede Globo em sonegação fiscal bilionária, com sumiço de procedimento fiscal dos arquivos da Receita Federal. Nem um pio, Jabor, o implacável?
E, óbvio, para Jabor sonegações fiscais empresariais não guardam relação alguma com dificuldades de caixa do Tesouro e, via de consequência, com problemas na economia. Talvez seja minha mente conspiratória de esquerda que cria ilusões, sei lá.
E mais: esqueça-se da globalização mundial e seus efeitos regionais. Esqueça-se que um candidato derrotado, de forma antirrepublicana, não aceitou a derrota e jurou desestabilizar o governo, promessa que efetivamente cumpriu. Esqueça-se que a economia, em seu aspecto nacional, foi sistematicamente bombardeada pela imprensa, o que causa efeitos materiais. Esqueça-se que uma operação policial-judicial tendenciosa e seletiva sabotou a economia ao atacar sistematicamente uma das maiores petrolíferas do mundo e as maiores empreiteiras do país (relembrando-se que a corrupção poderia ter sido combatida sem prejuízo desse capital econômico). Esqueça-se que, ao menos até 2012/2014, os números nacionais eram inegavelmente melhores do que os registrados na história de nossa economia e mais ainda nos indicadores sociais.
Esqueça-se tudo isso em nome da falácia, da propaganda enganosa, da fraude intelectual.
Jabor termina o texto pedindo que celebremos a queda do PT. Não Jabor, não é possível celebrar, a hora é sombria, é para lamentar. Não por causa da queda do PT, em si, embora seja lamentável que um grande partido de esquerda seja atacado, como foi, pelo stablishment, mas em função do modo como ocorreu.
A democracia foi estuprada por um legislativo corporativista e patrimonialista, que autorizou o prosseguimento de um processo de impeachment pelo voto de deputados que bradavam pela moralidade e contra a corrupção, embora o processo não trate de corrupção e embora eles próprios é que sejam em grande parte acusados por corrupção, a começar por quem presidiu a sessão.
A democracia foi esquecida, jogada para escanteio, por um judiciário manipulador, em certa instância, e acovardada, em outra, ao perseguir seletivamente um partido por coisas que não enxerga nos demais e permitir o prosseguimento de um processo de impeachment sem fundamento legal, escudado no entendimento pusilânime de independência entre os poderes.
A democracia foi cassada, anulada, ilegalmente em seu aspecto mais fundamental, que é a escolha popular do mandatário. O povo pode não ter certeza a respeito, mas você, Jabor, com sua autoafirmada inteligência complexa, sabe que inventaram um motivo para cassar os votos dos eleitores. Um motivo inédito, não previsto na lei e, portanto, fora do Estado de Direito.
Você está celebrando, Jabor, um governo ilegítimo, que inicia com ministério misógino, sem nenhuma mulher na equipe principal; redutor de direitos trabalhistas e previdenciários; dilapidador do patrimônio público, com as pretendidas privatizações; e dissimulador da transparência pública, com o fim da controladoria geral.
Afinal, você celebra o que, exatamente?
Jabor, do que li, a única coisa que me pareceu totalmente honesta foi a confissão de que era um falso comunista e de ser um liberal econômico. Por conta disso, seu texto não deveria intitulado de "ilusões perdidas", referindo ao passado, mas de "ilusões criadas", pertinentes ao presente.

Além disso, foi parcialmente honesta a confissão de que você desprezava a democracia na época em que fingia ser comunista. Digo parcialmente porque você, Jabor, ainda despreza.

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