terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Entre a prisão e o ócio remunerado, que tipo de sociedade desejamos?



Presumindo-se que todos ainda sejamos capazes de sonhar, que tipo de sociedade nós, brasileiros, desejamos para viver? Que espécie de comunidade humana reside em nossas utopias mais longínquas?
Assim como todo objeto de estudo, sociedades podem ser categorizados de diversas formas. Costumam ser rotuladas como abertas ou fechadas, capitalistas ou comunistas, democráticas ou ditatoriais, modernas ou primitivas, e diversas outras, sendo possível avançar em infinitas divisões categóricas mais adequadas ao estudo que se pretende.
No presente caso, interessa a divisão próspera ou opressiva, mais adequada e abrangente do que, simplesmente, feliz e infeliz, que também caberia, porém dizendo menos do que se pretende.
Embora semanticamente a palavra opressão
envolva imediatamente o significado de dominação e autoritarismo, subjaz em seu sentido mediato a ideia de tristeza, depressão e frustração decorrente do sentimento sempre presente de impotência e ausência de livre-arbítrio. Uma sociedade oprimida é geralmente formada por indivíduos que sentem perdedores, impotentes e infelizes.
A ideia mais simples de opressão é a de alguma coisa mais forte exercendo pressão sobre outra mais fraca, de modo a impedir que a mais fraca realize qualquer movimento não desejado pelo mais forte.
Em regra, toda sociedade é opressora, dado que viver em sociedade implica necessariamente abdicar do desejo individual em favor do benefício coletivo. Todavia, em certos casos a sociedade oprime muito além do que seria minimamente necessário para o bem comum. Freud, em seu opúsculo "O mal-estar na civilização", pontificou que a vida em sociedade, ou seja, a civilização, por ele também identificada como cultura, é sempre caracterizada pela antítese liberdade x segurança. No início do século XX, quando o escreveu, o pai da psicanálise já considerava que as pessoas haviam cedido liberdade demasiada em favor de uma suposta segurança, sendo daí que derivava a maior parte dos problemas psicológicos. Ou a infelicidade, acrescento.
Atualmente, quando a hipotética profundidade do terrorismo conduz estados considerados altamente ciosos da liberdade, como os Estados Unidos, a prender cidadãos sem ordem judicial, sem o direito de defesa e por prazo indeterminado, o que Freud diria?
São exemplos gritantes de excesso opressor as questões que envolvem a homoafetividade e o exercício da sexualidade em geral, o uso de drogas, a prostituição, o aborto e outras que em geral impõem ao indivíduo restrições que visam exclusivamente satisfazer uma duvidosa, e muitas vezes hipócrita, satisfação moral coletiva, que é coletiva somente para eles, os incomodados que possuem voz, e não para a efetiva coletividade. Exemplos drásticos de sociedades opressoras seriam as que permitissem o trabalho escravo, adotassem o genocídio como programa de governo ou a transformação compulsória dos cidadãos em espiões uns dos outros, com delações obrigatórias, sob pena de prisão ou morte. É interessante relembrar que, nesse último exemplo, o regime de governo da sociedade se transformaria em totalitarista, segundo descreveu Hanna Arendt, pois o terror difuso daí decorrente, de ser delatado pelo parente ou pelo vizinho, se dissemina e atomiza a sociedade, ou seja, a degenera, tornando o que era sociedade em mero ajuntamento de pessoas, cada uma preocupada apenas com os próprios e imediatos interesses e, de preferência, encerrada solitariamente em sua casa, com temor de interrelações.
Uma forma mais branda de opressão, em geral admitida pelo silêncio obsequioso de quem produz opinião pública, mas nem por isso menos importante, se materializa através da má distribuição da riqueza. A miséria e a pobreza são, sempre, opressivas, capazes de impedir o exercício dos mais elementares direitos da pessoa, não somente os mais óbvios, como o de ter abrigo e alimento, mas também os de ir e vir (aprisionando a pobreza em guetos) e o de obter conhecimento (imobilizando o pobre no estamento em que nasceu).
Uma sociedade opressora, pois, é aquela que exerce abusivamente o direito de restringir a liberdade individual, assim impedindo que os indivíduos que a compõem se autodeterminem e, consequentemente, se realizem nos modos por eles desejados.
Prosperidade, por sua vez, deve ser compreendida no sentido abrangente de bom êxito na vida e costuma ser acompanhada da sensação geral de felicidade. Claro que não cabe, de forma alguma, igualar "bom êxito na vida" ao significado rasteiro e frívolo de "ganhar muito dinheiro". A palavra guarda maior afinidade com a ideia de florescimento pessoal desenvolvida pelo economista ecológico inglês Tim Jackson, em seu livro "Prosperidade sem crescimento – Vida Boa em um Planeta Finito", cuja leitura é enriquecedora.
Dentro dessa significação, ganhar dinheiro até o ponto da obtenção de uma renda digna é apenas um dos diversos requisitos necessários ao atingimento da meta de florescimento pessoal, que obviamente não é passível de ser alcançada por quem sequer possui alimento ou abrigo. A prosperidade individual, o florescimento pessoal, somente se inicia a partir da satisfação das necessidades básicas, nunca antes.
Renda digna, todavia, não é riqueza e nem chega perto desse conceito. Riqueza corresponde à acumulação de bens além do necessário à manutenção de uma vida digna. A riqueza, na verdade, pode se tornar um empecilho à prosperidade, pois traz consigo, além da fartura em satisfações materiais, os abalos espirituais decorrentes da mera posse já que, via de regra, quem tem alguma coisa se preocupa com essa coisa e, sob diversos ângulos, a ela está aprisionado.
A prosperidade, pois, se identifica amplamente com os seguintes desejos: manter bom relacionamento com familiares e amigos; segurança material para si e para essas pessoas; realização de ações gratificantes, profissionais ou não; manutenção de um emprego decente e atrativo com renda suficiente para que se viva dignamente; e participação ativa nas decisões de sua comunidade, com isso desenvolvendo um sentimento de pertencimento.
Assim entendido, renova-se a indagação inicial: que Brasil queremos? Próspero, e portanto, feliz? Ou opressivo e, assim, infeliz?
Fruto da melhoria geral na renda dos brasileiros ocorrida nos últimos anos, é cada vez mais comum que brasileiros viajem para outros países, tendo a oportunidade de conhecer outros povos, outras culturas, outras experiências de vida em comunidade. E não são poucos os que ficam maravilhados com o que veem. Um ponto muito comum é a sensação de segurança e respeito às leis que percebem no exterior. Espantam-se com a ausência de roubos a transeuntes. Admiram o fato de que automóveis param em faixas de pedestre, sem sinal vermelho, para o pedestre atravessar.
Deixando de lado o fato de que, em geral, sente-se mais segurança em lugares cuja amplitude dos riscos desconhecemos, surge daí a pergunta: por que esses povos tendem a respeitar mais a ordem legal, serem mais urbanos e possuir menos criminalidade?
Como resposta, afirma-se que essas sociedades possuem uma cultura superior, mais antiga e por isso mais desenvolvida, com um povo mais educado e menos propenso ao roubo e à corrupção. Em geral, brasileiros, os novos viajantes, acabam por concluir que a culpa é de quem habita o Brasil, ou seja, o povo brasileiro, ignorante, inculto e desonesto por natureza.
Trata-se do que foi maravilhosamente bem sintetizado por Nelson Rodrigues através da expressão "complexo de vira-lata". Disse o dramaturgo que o "brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima".
Não há dúvida de que certas sociedades são mais antigas, educadas e cultas do que a nossa. Isso, porém, por si só, não dá conta de explicar por que suas sociedades respeitam mais as leis e são menos propensas à violência do que a brasileira.
O fato é que a conclusão simplista, fundada no reducionismo da comparação direta entre povos que se encontram em momentos históricos distintos, não pode ser admitida como verdadeira. Nenhum povo é mais ou menos propenso ao respeito às leis ou a descambar em violência. Nem os admirados, nem os cuspidos (nós, os brasileiros). De forma geral, seres humanos submetidos aos mesmos níveis sociais de temperatura e pressão, agirão de forma similar. Trata-se de questão evolutiva e não cultural e, por isso mesmo, é uma inclinação mais forte do que a que decorre da civilização na qual se inserem.
Se sociedades inseridas no estado de direito e fundadas na lei autorizam a prevalência do interesse do opressor politicamente mais forte (é a elite que elabora as leis), com muito mais razão prevalecerá, e de forma exponenciada, a opressão pela força física direta num ambiente sem a presença inibidora da lei e do Estado ou, ainda pior, quando a iniciativa opressora do indivíduo encontrar eco na estrutura do Estado. De fato, vários experimentos acadêmicos foram capazes de demonstrar que a ausência de controle externo ao indivíduo é capaz de conduzi-lo à prática do mal banal e ao crime, sendo exemplo o que foi conduzido pelo psicólogo Philip Zimbardo na Universidade Stanford, na Califórnia, Estados Unidos, que pode ser visto no filme alemão "A experiência", filmado em 2001.
A sociedade mais culta e educada da Europa, a alemã, nos proporcionou o exemplo mais hediondo de opressão, o nazismo. Outra cultura antiga, a russa, foi vencida pelo totalitarismo comunista. A cultura mais antiga e ordenada do planeta, a chinesa, cedeu à violência opressiva de Mao, principal responsável pela maior carnificina da história da humanidade. Filhos diletos dos civilizados europeus, os americanos não hesitam em guerrear e matar, e não hesitaram em dolosamente matar centenas de milhares de civis inocentes com a bomba atômica, fundados em racionalismos antiéticos e amorais.
Num certo sentido, e dado que o Brasil não se envolve costumeiramente em guerras, pode-se afirmar que, desde 1500, nosso país possui um dos povos mais pacíficos do mundo, que abomina a violência.
Isso significa que deve haver algum elemento social que nos distinga da sociedade europeia, e de outras admiradas sob o viés do vira-latas complexado, que seja responsável pelo maior número de crimes contra o patrimônio e contra a vida que ocorrem no Brasil e, também, pelo maior descaso com a legislação.
Claro que há e são, principalmente, dois elementos. Chamam-se universalização da educação de qualidade e transferência de renda ou, mais comumente, reunidos ambos em uma expressão só, estado de bem-estar social.
Trata-se de obviedade: quanto menos pressão ambiental o animal enfrenta em relação à obtenção de abrigo e alimento, menos ele reagirá em relação ao outro. Serve para o leão, para a formiga e para o ser humano.
É mais fácil ser gentil e educado com vizinhos e estranhos quando a família está abrigada e alimentada e o filho estuda em bom colégio. Se isso é alcançado por renda própria ou através de programa governamental de transferência não importa, o efeito será o mesmo. O que importa é que, em geral, quem sobrevive dignamente tende a estar mais satisfeito com a sociedade que integra e menos propenso a surtos de ira ou revolta.
Claramente o ressentimento, a depressão e o estado geral de infelicidade são fatores determinantes para o descumprimento da lei e para a ação criminosa. Uma pessoa preocupada com a próxima refeição ou onde sua família irá dormir terá menos inclinação a parar na faixa de pedestres (presumindo-se que por alguma razão esteja dirigindo embora não tenha dinheiro para comer), simplesmente porque terá menos respeito por todas as pessoas que a cercam.
Pode-se imaginar um agrupamento humano do tipo "cada um por si". Difícil seria categorizar tal agrupamento como sociedade humana, cujo valor semântico embute a noção de associação para ajuda mútua. Um agrupamento "cada um por si" seria socialmente inferior a um bando de leões, já que, nele, todos comem independentemente de terem caçado, mesmo os dorminhocos.
Em qualquer agrupamento animal do tipo "cada um por si" é natural que os indivíduos menos favorecidos ataquem a caça dos mais favorecidos. Portanto, a opção por essa espécie de sociedade importa a ciência prévia de que haverá um certo incremento nos assaltos à propriedade privada.
Eis aí, pois, uma explicação para a aparente bonomia europeia, japonesa ou qualquer outra: são países cujos habitantes, por emprego ou por transferência de renda, não sofrem as pressões pela sobrevivência que os brasileiros sofrem.
Os Estados Unidos em geral são exemplificados como país no qual o estado de bem-estar social não existe. Não é verdade. A taxa de pobreza absoluta nos EUA é de 21% da população, índice que cai para cerca de 12% após as transferências governamentais (1). E esse é um país desenvolvido que transfere pouco. Os europeus são mais arrojados.
Na Suécia, a taxa inicial de pobreza absoluta é de cerca de 24%, que cai para cerca de 6% após a intervenção do estado. Na França, 36% e 10%, respectivamente. A Noruega, de forma mais ousada, praticamente elimina a pobreza, pois reduz para cerca de 2% da população uma miséria que, sem transferência de renda, seria de mais de 9% (1).
E no Brasil? Como melhoramos a renda dos menos afortunados?
O pobre brasileiro que trabalha possui direito ao salário-família, cujo valor é de R$ 37,18, para quem ganha até R$ 725,02, e de R$ 26,20, para quem ganha até R$ 1.089,72 (2). Acima desse valor, nada.
R$ 26,20 e R$ 37,18, ou seja, o correspondente a cerca de 4% de um salário mínimo que, por si, já é ridículo (R$ 880,00 a partir de janeiro de 2016). Será que não vai fazer falta no orçamento federal?
O brasileiro que tem emprego, e ganha até dois salários mínimos mensais, também possui direito a um salário mínimo anual, através do PIS, o que corresponderia ao 14º salário, o que, considerado o novo salário mínimo, equivale a um acréscimo salarial mensal de R$ 73,00 (3). Novamente: não vai fazer falta essa derrama de dinheiro?
Fica-se assim: um cidadão brasileiro que está empregado e recebe salário mínimo, na verdade ganha o equivalente a cerca de novecentos reais após o incremento de salário-família, projeção da parcela duodecimal do PIS e dedução da contribuição previdenciária. É isso: o afortunado brasileiro empregado ganha cerca de 225 dólares mensais.
O Dieese projetou, para novembro de 2015, o valor de R$ 3.399,22 para o salário mínimo ser capaz de atender às necessidades de habitação, alimentação, educação e lazer (4).
Conheço vários críticos do bolsa-família que dariam um tiro na cabeça se recebessem como salário o valor projetado pelo Dieese. Portanto, não sofreriam com o real salário mínimo, de R$ 880,00, pois já teriam morrido antes.
Mas, esses são os sortudos, os brasileiros que têm emprego. E os que não conseguem emprego?
Quem não consegue emprego possui, basicamente, o bolsa-família, o qual somente é dado às mães ou aos pais solteiros ou viúvos.
Brasileiros sem filhos, homens e mulheres, e sem renda somente possuirão amparo a partir dos 65 anos, quando terão direito a uma aposentadoria especial sem contribuição. Até lá, é como diz Bauman, terão que resolver individualmente os problemas que decorrem do coletivo. Soluções privadas para questões públicas nada mais significam do que o império do "cada um por si" descrito no início, que nos involui à animalidade.
A falta de emprego ou de empregabilidade não decorre de ação ou omissão do indivíduo, mas de circunstâncias da sociedade, que tanto não produz a educação necessária, como não é capaz de gerar o número suficiente de empregos. Aliás, a civilização humana será cada vez mais incapaz de produzir empregos em número satisfatório, trata-se de uma bomba-relógio já acionada e que deve ser desativada o quanto antes. A ideia de pagamento social sem trabalho parece que será uma das soluções possíveis.
Como transferir às pessoas a solução de problemas que estão muito acima de sua potência e capacidade de decisão? A resposta é simples: não é possível.
Não cabe invocar a Índia, como se costuma fazer, como exemplo de sociedade pobres e pacífica. De pacífica a Índia possui pouco, tratando-se de país em eterno conflito de fronteiras, com terrorismo e fundamentalismo religioso que chega aos embates físicos entre indivíduos de religiões diferentes. Embora o que foi dito antes, há o esforço em exercer a cultura da não-violência, famosa em Gandhi, que não é típica na maioria das demais civilizações. Deve ser considerado também que aquele país iniciou um projeto de redução da desigualdade antes do Brasil, de modo que a desigualdade afrontosa que oprime e conduz à reação é inferior á do Brasil. Paralelamente, se a propriedade é algo respeitada pelos indianos, outros valores não são, gerando conflitos sociais que não possuem tal dimensão no Brasil, como os estupros e os já apontados tremores religiosos.
Tampouco cabe se irresignar pela circunstância de ser possível a alguém viver sem trabalhar. Primeiro, porque ninguém escolhe quando ou onde nascer e, ao nascer, encontra uma cultura completamente formada e contra a qual não pode se opor. A sociedade humana não fornece opções aos incomodados que não desejam integrá-la, aos que não se adaptam às suas regras. Antes do domínio da propriedade privada, sempre era possível aos desajustados o retorno ao estado de natureza, à caça e à coleta. Se Buda nascesse atualmente, teria dificuldades em vagar pelo mundo em busca de elevação: encontraria um sem número de arames farpados a barrar o seu corpo e, portanto, a ferir o seu espírito. Hoje, com as propriedades cercadas e muradas, com as fronteiras fechadas à imigração e com as florestas, a fauna e a flora protegidas por lei (ainda bem), se tornou impossível abdicar da convivência social.
Segundo, porque não trabalhar se constitui em opção individual e legítima. Se alguém resolve viver de forma mínima, frugal, quase ascética, sem preocupação com o consumo, com exigência apenas de abrigo e alimento razoáveis, e não há como viver do meio natural, o que fazer? Encarcerá-lo? Essa opção, com o aparato estatal necessário à repressão e com a construção de um sem número de prisões, poderia sair bem mais cara, além de claramente ser desumana. Fuzilá-lo? Infeliz da sociedade que mata seus desajustados. Claro que não. Então é melhor que seja sustentado pela coletividade, o que pode resultar inclusive em benefícios. Quantos não se dedicariam a alguma arte ou ao conhecimento, retornando em beleza e cultura a pequena migalha que lhe foi entregue?
A inveja do ócio alheio não deveria afligir quem possui ânsia de aquisição de maior quantidade de bens materiais. Com certeza um programa como o bolsa-família não será capaz de preencher a vaidade de possuir um smartphone último tipo ou de custear uma viagem de turismo internacional. Quem deseja uma renda ótima jamais se contentará em receber apenas uma pequena ajuda do governo.
São realidades distintas e não deveriam provocar choque.
Terceiro, porque nem sempre quem recebe auxílio do governo está desempregado. O auxílio, cujo valor é quase insignificante no Brasil, é, em princípio, para complementar renda e não para ser sua única fonte. Isso significa que o benefício é, em grande parte, dirigido a pessoas que são exploradas por alguém, que obtém lucro através do pagamento de salário irrisório. Sendo assim, a transferência de renda ganha a dimensão nobre de redução de flagrante injustiça social.
Como é difícil, nesse momento, exigir que empregadores em geral paguem um salário mínimo superior, inclusive porque, ao lado dos exploradores, encontram-se microempregadores sem condição de pagar mais, aplica-se o paliativo de aumentar a renda através da carga tributária.
Como criticar isso num país que transfere mais de um terço (36%) de toda a arrecadação tributária para os ricos (mais de 240 bilhões de reais), através do pagamento de juros dos títulos da dívida pública?
Se somados os valores pagos a título de aposentadoria rural, benefício de prestação continuada, renda mensal vitalícia, seguro-desemprego, PIS e bolsa-família, a transferência de renda para os pobres não chega a 17% do orçamento federal, sendo que o bolsa família responde por menos de 1% dessa fatia.
Então o que está travando o Brasil é a transferência de renda para os pobres, de 17%, e não a dos ricos, de quase 40% do mesmo orçamento?
Isso sem considerar que a transferência para os ricos, em geral, é definitiva, ou seja, não volta aos cofres públicos, enquanto a dos pobres, destinada basicamente ao consumo mais urgente, em geral retorna por metade na forma de impostos indiretos. E essa conta também deixa de levar em conta que os ricos igualmente são beneficiados por transferências indiretas, sendo exemplo a prática de empréstimos concedidos com juros subsidiados no BNDES ou isenção fiscal aplicada como incentivo à instalação de fábricas ou incremento das vendas.
Aquelas sociedades que, vistas de longe, causam salivação pavloviana em certos vira-latas, por inveja, tributa pesadamente suas classes média e rica e em geral impedem a transmissão da totalidade da herança pela via de dura taxação. Em certos países europeus, a carga tributária é de quase 50%, enquanto no Brasil é de pouco mais de 34% (5).
Apenas como exemplo, um trabalhador que receba alto salário, digamos, R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais) por ano - ficará em média com 74% desse valor se brasileiro for, enquanto, mantido o mesmo padrão salarial em dólares, ficará com 54% na Itália e 56% na Alemanha (6).
Como outro exemplo de favorecimento aos cidadãos do andar de cima, afirma o senador Lindbergh Farias (7), em discurso no Senado, que somente o Brasil e a Estônia, em todo o mundo, isentam totalmente os dividendos recebidos por rentistas.
Da lista elaborada em 2012 pela instituição inglesa Legatum Institute (8), dos países considerados mais prósperos do mundo a partir dos critérios de saúde da economia, empreendedorismo e oportunidades, governança, educação, saúde individual, segurança e sensação de segurança pessoal, liberdade pessoal e capital social, os três primeiros colocados são escandinavos: Noruega em primeiro, Dinamarca em segundo e Suécia em terceiro. Todos com carga tributária elevada e com programas de transferência de renda que não podem ser comparados ao bolsa-família. A transferência de renda é real, pesada, em valores altos inclusive para os padrões europeus. E todos países pequenos se comparados ao Brasil, necessitando, portanto, de um compromisso orçamentário menos impactante para atender às demandas sociais, não somente de renda, mas de educação, saúde e segurança.
Aí está a evidência cabal de que tributação elevada nas camadas superiores, com auxílio aos desamparados e prestação de serviços públicos de qualidade, principalmente educação, é capaz de reduzir a desigualdade e as tensões sociais, contribuindo para a sensação de paz testemunhada pelos nossos viajantes e causa de tanta dor de cotovelo.
São brasileiros, entretanto, que, mais favorecidos, reclamam de serviços públicos que não usam, do gigantismo de um Estado do qual pouco necessitam e também de uma carga tributária que não lhes pesa no bolso, teses que se contradizem se analisadas a fundo.
O problema de quem se opõe ao auxílio governamental aos pobres brasileiros é que invejam sociedades que consideram civilizadas apenas no que toca aos efeitos visíveis, mas não às causas subjacentes. O motorista que para na faixa de pedestre é o último degrau numa escada de causalidades cujo primeiro degrau é a participação mais significativa, honesta e fraterna dos empoderados nesse grande condomínio que se chama nação.
Essa conclusão em nada é afetada ou mitigada pelo insano esforço mundial atual de reduzir ou acabar com o welfare state na Europa. Trata-se de gigantesco equívoco que, se levado a efeito, produzirá efeitos nefastos no futuro. Hitler nasceu do grito dos desesperados e foi isso que, cessado o conflito, conduziu ao estabelecimento do estado de bem-estar social. Quem não aprende com a história...
Que tipo de sociedade desejamos para viver?
Uma no qual o vizinho desempregado consiga sobreviver ou uma na qual ele seja obrigado a pular o seu muro e roubar para alimentar a família?
Para mim a resposta parece clara e cristalina: prefiro viver no estado de bem estar social e andar em paz nas ruas, ainda que isso me custe uma facada mais aguda em meu salário.


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