quinta-feira, 1 de maio de 2014

O que é a justiça?


Os primeiros pensadores a se preocupar com a noção de justiça, como não podia deixar de ser, foram os gregos clássicos.

Aristóteles, embora admitindo que elaborar um conceito de justiça era quase impossível por tratar-se de um ideal moral muito impreciso, pontificou que o ato de justiça envolvia conceder tratamento igual aos iguais e desigual entre os desiguais.
O que isso significa? Significa que, enquanto é justo, por exemplo, tratar da mesma forma duas pessoas ricas, assim não seria se o tratamento isonômico atingisse um rico e um mendigo. Deste modo, uma sociedade justa deveria se pautar por regras morais e legais que observassem as peculiaridades dos indivíduos.
Disse decorre que, hipoteticamente, a subtração de coisa alheia praticado por uma pessoa rica deveria ser penalizada mais severamente do que a mesma subtração se praticada por um pobre. Isso porque a necessidade material que se presume no pobre, e que pode conduzi-lo ao ilícito por necessidade, inexiste no rico, que pratica o delito por prazer ou outros motivos menos desculpáveis.

A crítica a Aristóteles, aqui, reside na circunstância de que seu conceito de justiça não dá conta de explicar a justiça em sua dimensão social, pois é restrito à aplicação das regras, não à condição da existência individual. Nesse sentido, dois mendigos poderão ser submetidos a regramento idêntico entre si e diferente daquele imposto aos ricos, porém continuarão mendigos, do que resulta o questionamento inevitável: é justa a existência de mendigos?
São Tomás de Aquino, por sua vez, ao pontificar que a materialização da justiça pressuporia dar a cada um o que é seu, deixa o mendigo na mesma posição social, pois não dá resposta a questão de como cada um obteve o que é seu. Dar ao mendigo o que é seu significa deixá-lo na condição de despossuído.
Em outras palavras, como pode ser justo dar a cada um o que é seu sem um aprofundamento sobre a origem da riqueza dos homens? Seria justo que o mero passar do tempo validasse, por exemplo, a herança atual proveniente de um roubo ancestral?
Caberia aqui, talvez, pensar numa aplicação sociológica para a tese da teoria do caos denominada "efeito borboleta". Um pequeno furto séculos antes poderia, na verdade, ser a causa de uma imensidão de miseráveis no presente? Se a apropriação indébita passada ou presente for de imensa magnitude, quais os efeitos a longo prazo?
A noção utilitarista de justiça, segundo a qual é justo aquilo que traz a maior quantidade de prazer para o maior número de pessoas, possui paradoxalmente um quê de iniquidade, pois aceita a dor e a miséria de um pequeno número de pessoas se disso resultar o benefício da maioria.
Existem diversas teorias sobre a justiça. Aparentemente, John Rawls nos fornece, não o conceito mais adequado de justiça, mas o melhor meio de construir uma sociedade justa. Trata-se de criar um arcabouço moral e jurídico sob o que ele denomina de "véu da ignorância".
Grosso modo, seria como se fossem eleitos representantes para estabelecer um conjunto de leis inteiramente novo e absolutamente independente de toda a legislação anterior, inclusive a Constituição. Todavia, tais representantes elaborariam esse novo ordenamento jurídico a partir de uma perspectiva obrigatória: o total desconhecimento sobre qual posição social que ocupariam após terminado o trabalho legislativo, ou seja, sob o risco de total perda da condição social possuída, inclusive toda riqueza e todos os bens, assim cientes de que poderiam passar a viver como mendigos ou pobres, em qualquer lugar do território, inclusive favelas, e ocupando qualquer atividade profissional ou nenhuma, talvez gari ou desempregado.
Esse é o "véu da ignorância", o desconhecimento sobre se as leis se aplicariam a eles mesmos e sobre como elas poderiam influir em suas vidas. É interessante o paralelo da ideia de justiça de Rawls com a imagem romana da deusa da justiça, com os olhos cegados pela venda da impessoalidade na aplicação das leis.
As leis, hoje, são destinadas basicamente à manutenção do controle social sobre os despossuídos. A indagação é: isso seria diferente, haveria mais justiça no ato de legislar, se, num exercício de alteridade, os legisladores pensassem em si mesmos como as pessoas que suportariam os efeitos finais das leis produzidas?
Um vislumbre disso pode ser visto nas leis que punem os crimes de colarinho branco, que são destinados a pessoas com mais dinheiro e poder e que, em geral, são bem mais difíceis de punir do que o roubo de uma galinha.
Por vezes a justiça é confundida com a atuação estatal dos membros do poder judiciário, o que está muito longe da verdade. O poder judiciário, em regra, não se preocupa com a distribuição de justiça, mas com a aplicação do direito vigente sobre casos concretos.
Caso o direito fosse tomado como representante da justiça, ter-se-ia que enfrentar o fato de que juízes erram, como qualquer outra pessoa, ou seja, nem sempre aplicam o direito com perfeição, o que significa que o poder judiciário é produtor de injustiças.
Além disso, o poder judiciário cria inúmeras soluções diferentes para casos absolutamente iguais, o que implica necessariamente que soluções injustas são materializadas com frequência pelo poder que leva o nome da justiça.
Por fim, ainda que o direito fosse aplicado corretamente, ele não representa e nem busca a produção de justiça, uma vez que o objetivo principal do ordenamento legal não é esse, mas sim a regulação da atividade humana. Sob tal ângulo, as leis promulgadas guardam relação com a supremacia de interesses vitoriosos e não com alguma inclinação estatal para a produção de justiça.
A teoria de Rawls, portanto, possui a virtude de criar um espaço imaginativo onde o sentido de justiça estaria necessariamente incutido no espírito do legislador, se não por uma inclinação ética pessoal, com certeza por temer o próprio destino.
Obviamente, trata-se de uma espécie de utopia sem condições práticas de materialização.
No mundo do factível, a sensação de justiça social seria muito maior se pequenas alterações nessa mesma sociedade capitalista em que vivemos fossem produzidas. Por exemplo, pode-se imaginar uma sociedade na qual todas as atividades privadas que já existem continuem privadas, com exceção daquelas vinculadas à educação, à segurança e à saúde. São áreas essenciais para o indivíduo e estratégicas para a nação.
A partir da valorização dessas áreas, num modelo ideal, seriam formados de maneira sólida, não indivíduos ou componentes, mas cidadãos aptos a exercer o seu papel numa sociedade mais justa e equilibrada.
Com o modelo atual, criam-se apenas estruturas de solidificação dos estratos sociais. Um pai pobre envia seu filho para um escola pública de pobres, cujo péssimo ensino não fornece a esse filho uma formação cultural e educacional que lhe proporcione a estrutura necessária para se alavancar numa melhoria em seu nível social. E assim se perpetua a casta dos miseráveis, na qual miseráveis geram novos miseráveis.
Num cenário em que os indivíduos que integram o poder e a riqueza forem obrigados a enviar seus filhos para a escola pública, o ensino tende a se tornar de qualidade. Afinal, ainda que poderosos e ricos, nem todos enviarão seus filhos para estudar no exterior.
Em paralelo, caso as agências bancárias, os shopping centers e os condomínios milionários passem a depender exclusivamente da polícia estatal para sua segurança, os investimentos nessa área serão multiplicados.
Aliado a isso, é bastante sensato supôr que, se a elite rica e poderosa necessitar cuidar de sua saúde em hospitais e postos de saúde públicos, surgirá um novo tipo de instituição de saúde: o Hospital Público D'Or.
Por pouco que seja, essas pequenas mudanças, num mundo movido pelo egoísmo e individualista, acabam sendo um tipo de utopia, ainda que nada tenha de irrealizável, inclusive porque são realidade em alguns lugares do mundo.
A descrição do que seja justiça é tão difícil como descrever a luz, que, se não há, é impossível explicar, mas, se há, imediatamente sabemos do que se trata.

Definitivamente, justiça não há. Como explicá-la? Como realizá-la?

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