quarta-feira, 23 de abril de 2014

O último condomínio do mundo




O mundo finalmente sucumbira a um conflito nuclear mundial.
Até onde se sabia, dos escombros daquilo que um dia fora uma orgulhosa civilização humana, com todas as suas metrópoles, somente restara um perdido condomínio no meio da floresta amazônica.
Sobrevivera por sorte, por estar escondido no meio da floresta. Era um grande condomínio rural horizontal onde se praticava uma experiência de fazenda comunitária. Praticamente uma pequena cidade, nele residiam quase duas mil pessoas que viviam de forma isolada, desenvolvendo uma economia mínima, autossuficiente e autônoma. Os próprios residentes plantavam e criavam todo tipo de cultivo e de animais.
Seus fundadores eram pessoas idealistas que se uniram na criação do condomínio, desejosos de vivenciar uma experiência de comunidade coesa e igualitária, assim fugindo ao caos da sociedade capitalista e consumista, na qual as pessoas eram valorizadas sob a métrica de suas posses.

Juntaram os recursos que possuíam e adquiriram as terras em conjunto, pondo toda sua energia, física e espiritual, a serviço de um novo tipo de comunidade. Talvez fossem apenas saudosistas, retornando a um modo de vida considerado ultrapassado.
A notícia do fim do mundo jamais chegou àquela comunidade. Isolados, distantes selva amazônica adentro, haviam resolvido não manter contato permanente com o mundo lá fora. Somente meses depois, quando necessitaram de produtos que a comunidade não conseguia fabricar e tiveram que ir à cidade, viajando duas semanas de barco, testemunharam diretamente a hecatombe e se assombraram. Todas as cidades pelas quais passaram estavam destruídas e vazias.
Diversas expedições foram enviadas na tentativa de localizar povoados sobreviventes. Nada foi encontrado, nenhuma alma parecia ter sobrevivido para além das cercas do condomínio.
Sem saber exatamente o que havia ocorrido, resolveram prosseguir com suas vidas, pois não havia alternativa.
O condomínio tornara-se algo como uma nova arca de Noé. Seus moradores eram os novos Adãos e as novas Evas destinados a perpetuar a espécie.
Até então eram felizes, viviam em idílica paz, resolveram permanecer assim.
O condomínio não tinha um síndico ou qualquer pessoa como líder, mas um conselho comunitário, composto por dez pessoas escolhidas pelos moradores para tomar as decisões mais corriqueiras, coisas do dia-a-dia. As decisões mais importantes era tomadas por aclamação por todos os moradores maiores de dezesseis anos reunidos na praça central, chamada de Ágora em homenagem aos gregos e ao espírito democrático que os envolvia. Era um imenso círculo sem paredes, com cobertura de sapê, mobiliada com dezenas de bancos de madeira bem compridos, onde podiam sentar-se, ao mesmo tempo, pelo menos dez pessoas. Os imensos bancos ficavam alinhados em círculo. No meio da Ágora havia um palco circular redondo, posicionado mais alto dos que os bancos, de onde se podia discursar para a plateia. Era também lá onde se realizavam os espetáculos públicos.
E assim era a vida no condomínio, com seus habitantes solidarizando-se uns com os outros, vivendo em harmonia, até que souberam que estavam sozinhos.
Para muitos dos moradores, a aposta na experiência comunitária foi bancada sob o sólido alicerce da certeza de que o mundo estaria lá fora, esperando-os, caso se desiludissem ou meramente se entediassem com a comunidade.
Agora, no entanto, era diferente, pois sabiam que tudo o que tinham era o condomínio e seus vizinhos.
Em torno de duas ou três dezenas de condôminos passaram a sentir aquele vago desconforto que sentimos quando nos damos conta de que não mais podemos contar com aquilo que já não utilizávamos, mas que até então estivera ali, à disposição. Algo como o sentimento que nutre a pessoa que somente percebe a intensidade do amor que sentia após perder o ser amado.
Esse grupo de inseguros, conversando entre si, concluiu que as coisas não poderiam mais permanecer como eram antes. As circunstâncias haviam mudado severamente. O condomínio já não mais tinha a proteção, a segurança, do mundo organizado lá fora. Como saber se outras pessoas, desorganizadas e famintas, não estariam à espreita, querendo se apropriar dos alimentos e demais bens dos condôminos?
Reunidas, dirigiram-se à Àgora e expuseram seus medos individuais. Tornaram coletiva a sensação de insegurança. Sabiam que o inimigo era imaginário, mas a mera possibilidade impeliu-os a agir.
A comunidade resolveu, então, que seria organizada uma tropa de segurança armada para proteção dos condôminos contra inimigos externos. O condomínio, pacífico, não possuía armas, de modo que algumas expedições ao mundo exterior foram organizadas para angariar as armas e munições necessárias à formação da tropa.
Resolveram que a tropa teria cem soldados voluntários, homens ou mulheres, e adotaria o nome de Força Armada Contra Ataques ou, simplesmente, FACA. A FACA teria o comando de um condômino eleito pelos demais.
Após o devido treinamento, a FACA assumiu o controle da segurança do condomínio.
Os condôminos passaram a dormir mais tranquilos, sabiam que estavam sob a proteção da FACA.
Meses e meses se passaram sem que houvesse qualquer ataque. Ao que parecia, não havia qualquer outro sobrevivente além dos moradores. Porém, por extrema cautela, resolveram manter a FACA em atividade.
Logo o comandante da FACA e seus soldados estavam enfadados com a inação. Os condôminos perceberam que era uma inutilidade deixá-los completamente sem ter o que fazer e tiveram uma ótima ideia. Como ocasionalmente surgiam pequenos entreveros entre os moradores, decidiram que a FACA cuidaria também da segurança interna, evitando agressões entre os moradores. A ordem era para os soldados da FACA impedirem as agressões e submeterem a divergência à assembleia da Ágora.
E assim foi.
O fim do mundo trouxera um problema de abastecimento para o condomínio. Alguns produtos não eram produzidos no condomínio, somente sendo adquiridos no mercado lá fora. Expedições eram enviadas para recolher mercadorias onde fossem encontradas, mas nem sempre eram.
O desabastecimento desses produtos começou a gerar controvérsias entre os moradores sobre quem teria direito a que produto. Papel higiênico era disputadíssimo. Os conflitos se agudizaram. Passou a ser difícil submeter todos os casos à Ágora, procedimento que exigia a convocação de todos os moradores.
O chefe da FACA, movido por boas intenções, solicitou que ele próprio resolvesse esses pequenos problemas do cotidiano. Os cidadãos entenderam que, em nome da segurança, não seria conveniente que esses diversos pequenos problemas ficassem sem solução imediata. Outorgaram à FACA o poder de resolvê-los imediatamente.
Em vista disso, para reduzir os conflitos, o chefe da FACA passou a controlar o abastecimento. Logo esse poder evoluiu para englobar também os pequenos problemas envolvendo o trabalho realizado pelos moradores, como a designação para a retirada do leite, a aragem da terra, a semeadura, e todos os outros trabalhos que os moradores deviam realizar.
A intervenção da FACA não agradou alguns moradores, que se sentiram incomodados pela intromissão em atividades que, até então, eram realizadas prazerosa e livremente. Eles deixaram de trabalhar e resolveram protestar junto ao Conselho Comunitário.
Na audiência do Conselho, o chefe da FACA discursou dizendo que esses moradores não estavam pensando no bem-estar da comunidade, que o que eles queriam acabaria por levar o condomínio à ruína. Disse que as regras foram estabelecidas como modo de organizar democraticamente os trabalhos, assim segurando que todos tivessem o que comer e o que beber. Temerosos de faltarem os suprimentos, o Conselho Comunitário deliberou por julgar improcedente a queixa dos que reclamavam.
No entanto, aproveitando-se da oportunidade, o chefe da FACA pediu que, em nome da segurança coletiva, fosse criada uma lei lhe concedendo o poder de determinar a prisão temporária de quem não acatasse as determinações da Força. Segundo ele, isso evitaria que novos insurgentes deixassem de trabalhar, prejudicando a comunidade.
- É preciso lembrar, discursou, que nós não temos mais o mundo lá fora nos aguardando caso algo dê errado aqui; a partir de agora se algo der errado pagaremos com as nossas vidas e as vidas de nossos filhos.
Convocou-se uma assembleia na Ágora e, muito impressionados com os relatos dos integrantes do Conselho Comunitário e com o discurso do próprio chefe da FACA, sempre em nome da segurança de todos, os moradores resolveram conceder o poder de prisão ao chefe da Força.
Tendo consolidado em suas mãos o poder de dirigir o trabalho dos moradores, o chefe da FACA considerou que seria mais interessante ele organizar cada uma das atividades segundo critérios lógicos, pois deixar cada um fazer o que gosta de fazer acabaria em caos e desabastecimento. Distribuíram-se longas relações com as atividades a serem realizadas e os nomes dos moradores que as fariam.
Um dos moradores, que fazia o mesmo trabalho há dez anos, não gostou de ter sido transferido para outro setor, e solicitou ao chefe da FACA o retorno ao trabalho anterior. O chefe da FACA negou o pedido e determinou que ele fizesse o que lhe fora destinado pela organização. O morador negou-se e foi imediatamente preso.
A esposa do morador, com seus dois filhos, foi protestar contra a prisão do marido e acabou presa também.
A notícia da prisão chegou ao Conselho Comunitário. Um dos conselheiros, amigo do morador preso e sabendo que ele era um bom homem e trabalhador exemplar, dirigiu-se ao chefe da FACA e exigiu, como conselheiro que era, a libertação do morador. Foi imediatamente preso, ficando na cela ao lado do morador.
O Conselho Comunitário reuniu-se para deliberar sobre o assunto e concluíram que o chefe da FACA estava se excedendo no poder que lhe fora concedido. Baixou-se uma ordem retirando dele tais poderes. Um dos conselheiros foi designado para entregar a ordem do Conselho. Mal entregou a ordem, o pobre conselheiro também foi preso.
O chefe da FACA reuniu dez homens armados e dirigiu-se ao Conselho Comunitário. Lá chegando, discursou para os oito conselheiros restantes sobre a importância do trabalho da FACA e sobre a necessidade de alguém ser designado para decidir com rapidez sobre os problemas da comunidade. Disse que todo a atenção da FACA era dirigida à segurança e bem-estar da comunidade e que, nesse sentido, todos aqueles que fossem contra o trabalho da FACA estavam, na verdade, sendo inimigos do condomínio. Lembrou aos conselheiros que seu poder fora concedido pela assembleia da Ágora e que eles, conselheiros, não poderiam retirá-lo. Por fim, considerando que eles haviam tentado retirar seu poder contra a determinação da Ágora, tratava-se de um golpe contra a comunidade, de modo que estavam todos presos e o Conselho Comunitário estava dissolvido, com ele assumindo todas as funções do Conselho enquanto a Ágora não decidisse de outra forma.
O próprio chefe da FACA convocou uma assembleia na Ágora e, no dia, mobilizou cinquenta homens armados e determinou que se posicionassem em volta da praça a título de mera segurança.
Na assembleia, ele discursou com veemência, conclamando todos a abrirem os olhos para a nova situação mundial. Não havia mais suporte protetor, não havia mais quem produzisse as coisas para os moradores caso eles próprios assim não fizessem. Havia o perigo constante de invasão por estranhos. Mais do que nunca, dizia ele, torna-se necessário o fortalecimento da FACA para proteção de cada um de nós. E prosseguiu falando por seis horas.
Ao final, solicitou que todas as decisões da comunidade fossem controladas por uma só pessoa, o que tornaria mais ágil o processo decisório e deixaria a comunidade mais segura. Lembrou que, caso não gostassem de sua gestão, bastaria convocar uma Ágora específica para modificação do comando. Colocou o assunto em votação. Os moradores, cercados por soldados armados, viram-se compelidos a aprovar a nova ordem.
O primeiro comando do chefe da FACA como líder absoluto foi determinar que as assembleias gerais não eram mais necessárias, já que ele poderia resolver as questões por si só. Um ou outro lembrou que, sem as Ágoras, não seria possível removê-lo do poder, mas já era tarde.
O segundo comando foi expedir uma resolução determinando que nenhuma ordem do comando da FACA poderia mais ser discutida. Na primeira recalcitrância, prisão, na segunda, morte após determinação do comando.
Uma outra resolução determinou que era obrigação de todo morador comunicar ao comando da FACA qualquer insatisfação demonstrada por moradores. O descumprimento dessa obrigação geral de vigiar e punir era a prisão. Em caso de reincidência, a morte após determinação do comando.
Mais uma resolução e foram proibidas as reuniões em locais públicos ou privados com mais de dez pessoas. Comemorações deveriam ser precedidas de autorização do comando da FACA.
Outra resolução e ficou determinado que a FACA determinaria que produto e que ração de alimentos cada pessoa teria direito.
As resoluções foram se avolumando, invariavelmente prevendo penas de prisão e de morte para os desobedientes.
Vários moradores foram presos, outros mortos, tudo em nome da segurança coletiva e do bem-estar social.
No fim de dois anos, metade dos moradores estava morta, a outra metade vivia como zumbis, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Não existiam mais festas ou reuniões. Todos temiam todos. Alguns denunciavam o comportamento antissocial do vizinho com o objetivo de conseguir uma ração extra de alimento.
Aos poucos, todavia, as mortes foram rareando na medida em que crescia o conformismo e o medo.
Dez anos depois, a FACA não matava mais quase ninguém, não era mais necessário. Dois terços dos moradores havia perecido ante o poder da FACA e o terço restante não mais resistia à ordem estabelecida.
A redução da mão-de-obra impactou severamente a produção de alimentos e todos eles viviam cortejando a fome, com exceção, é claro, dos membros da FACA que, para dar proteção a todos, precisavam estar bem alimentados.
O sábio chefe da FACA expediu uma resolução obrigando os casais férteis a terem, pelo menos, dois filhos. Hesitou, todavia, em determinar a prisão ou morte dos que descumprissem a determinação. Afinal, já eram poucos os trabalhadores. Resolveu puni-los com redução da ração na proporção da demora em ter filhos. Tornou os testes de fertilidade obrigatórios e proibiu o uso de meios contraceptivos.
Vinte anos se passaram e jamais houve qualquer tentativa de invasão do condomínio por estranhos. Nunca souberam de nenhum sobrevivente além deles.
Duas mil pessoas sobrevivera à catástrofe nuclear. Somente um terço delas havia sobrevivido às regras de convivência estabelecidas por elas mesma. O condomínio agora, porém, estava em segurança.

A segurança da FACA.

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