segunda-feira, 1 de abril de 2013

A laicidade em risco


Fundamentalismo religioso não é, como pode aparentar, o fanatismo da fé que conduz ao completo abandono da racionalidade pelo indivíduo e o faz cometer, em nome dos deuses, todo tipo de ato insano.
É possível a coexistência de um fundamentalismo de fé com o uso da razão, evitando que o crente fique totalmente cego à palavra de outro ser humano, o pastor. Nesse caso, o fundamentalista da fé agirá exclusivamente de acordo com o seu entendimento acerca dos ensinamentos religiosos, ou seja, daquilo que interpretar que emana dos livros sagrados, recusando-se a pautar seu comportamento pela interpretação alheia.
O fundamentalismo religioso racional é capaz de evitar o fanatismo irracional.

Fanatismo religioso é mais do que a mera fé superdimensionada. Na verdade, pode-se afirmar que sua existência independe mesmo de fé. Um religioso sem fé, mas obediente às regras religiosas por alguma espécie de conveniência pessoal - medo ou ambição -, pode se tornar um fanático de uma forma ainda mais perigosa do que a do fanático com fé.
Nessa perspectiva, o fanatismo religioso se caracteriza por uma submissão tão completa do seguidor da religião aos dogmas de sua igreja, que a palavra do sacerdote, como suposta representação da vontade transcendente, é suficiente como autorizador de sua conduta, seja ela qual for, sem limites.
Com fé ou sem fé, a religião é, de modo geral, um poderoso instrumento alienador da condição humana racional. Abdicando de sua própria vontade em nome da vontade ditada pelo livro sagrado ou pelo sacerdote, o ser humano aliena-se de sua capacidade intelectiva, de sua razão, e age estritamente de acordo com os interesses do templo a que pertence, interesses esses nem sempre direcionados aos desígnios divinos.
Claro que pessoas existem que não perdem o uso crítico da razão ainda que mantendo a sua fé. Essas, porém, representam a minoria dos que frequentam templos e, quanto a elas, a história possui exemplos de que, num momento crítico, serão perseguidos como hereges por descumprirem a palavra do sacerdote. Em outras palavras, num momento de tensão histórica, o religioso crítico e o ateu são queimados na mesma fogueira.
A grande massa religiosa, formada pela população com menor acesso ao conhecimento, é cega para as contradições de sua instituição religiosa. Isso significa que, ainda que venham a perceber, pela interpretação direta dos ensinamentos de sua seita ou religião, que a palavra da instituição é distorcida em relação aos ensinamentos, em geral se submeterão à palavra da instituição, tanto pelo forte sentimento de pertencimento, como também porque, no mais das vezes, a instituição é a principal, ou única, intérprete oficial da real intenção que subjaz aos ensinamentos divinos, à palavra dos deuses.
Caso a contradição seja de tal ordem que não se possa contornar, então pacifica-se a inquietação íntima através da atribuição da força de um mistério da fé, indiscutível e que deve ser aceito acima da razão e da compreensão, sob pena de heresia e excomunhão. Exemplo dessa espécie de contradição pacificada pelo mistério da fé pode ser observada em relação ao homicídio e ao suicídio, que virtualmente todas as religiões condenam, o que não evitou no passado, nem evita no presente, que assassinatos e suicídios, não somente sejam perdoados se feitos em nome dos deuses, mas sejam determinados pelos sacerdotes, como oferenda para os deuses, às vezes com promessa de recompensa na vida pós-morte.
O dogmatismo religioso cego, capaz de manipular as massas, com todas as suas maléficas possibilidades, foi o mote para que a modernidade afastasse de vez a religião da política, instituindo-se o estado laico em todas as democracias modernas.
O estado laico pressupõe, é sua condição indispensável, que as decisões coletivas sejam analisados unicamente pelo enfoque do bem comum, ainda que possivelmente contrariando a vontade dos deuses. Como exemplo, um estado legitimamente laico deve agir despreocupado quanto à posição das religiões no que concerne à orientação sexual das pessoas. Todo cidadão é, acima de tudo, um ser humano cuja preferência sexual constitui escolha de cunho reservado, privado, afeto ao seu foro íntimo.
Relacionamentos românticos ou sexuais do cidadão não são preocupações do estado pois são incapazes de provocar, apenas por sua existência, qualquer violência, física ou moral, ao próprio indivíduo ou ao outro. Caso alguém se sinta abalado moralmente pela mera ciência de algum relacionamento sexual que considere pervertido, a causa do abalo certamente decorre de sua própria suscetibilidade e não do comportamento reservado do outro.
Os homossexuais, como pessoas e como cidadãos, devem gozar exatamente dos mesmos direitos e prerrogativas concedidos indistintamente a todos os demais cidadãos, inclusive a consolidação de seus laços familiares, como casamento civil e paternidade.
Quando decisões dessa natureza passam a ser manipuladas pela orientação religiosa, estamos diante de um grave problema em relação ao mandamento constitucional de laicidade do estado.
Atualmente no Brasil, supostamente em nome de seus respectivos deuses, a bancada religiosa manobra o parlamento em relação à regulamentação do casamento civil homossexual, almejando adequar a legislação, aplicável a todo o povo, de todas as religiões e também aos ateus, às escrituras sagradas. Aceitar isso abre um precedente sombrio, pois, no futuro, tal bancada poderá conduzir o Brasil à guerra também por motivo religioso. Ou nos fazer retornar à Idade Média, tipificando como crime a homossexualidade, a heresia ou a prática de religiões consideradas “satânicas”, como o espiritismo ou o candomblé. Dependendo do tamanho da bancada religiosa, é possível imaginar a aprovação de reforma constitucional que transforme o Brasil numa teocracia cristã. Por improvável que seja, isso é possível desde que o país siga aceitando o afrouxamento da laicidade em pequenas doses. A permissão de eleição de parlamentares estruturalmente vinculados a igrejas é o primeiro passo. Depois virão os prefeitos, os governadores e, finalmente, os presidentes da república.
Claro que políticos religiosos existem e não se pode imaginar cassar seus direitos políticos e democráticos. Não é disso que se está falando. O problema tratado guarda relação estrita com os políticos que possuem vinculação íntima, estrutural, com alguma religião, seja como sacerdote, seja participando de sua criação e gestão, de forma pública ou dissimulada. Esses não deveriam participar do processo político-partidário.
O grande “xis” da questão, que merece profunda reflexão, é o poder de manipulação política das igrejas, tanto pelo aspecto da fé religiosa, como em função de seu poder econômico.
As igrejas cristãs são incrivelmente ricas e não hesitam em utilizar dinheiro para a propagação de seus ideais, como demonstram as incontáveis aquisições de rádios, televisões, jornais, revistas, sites e todo tipo de mídia. Através dessa rede de divulgação, e principalmente pela palavras dos ministros no interior de seus templos, padres e pastores orientam indiretamente a política nacional através da manipulação do voto de seu rebanho. Por conta disso, e não bastasse essa influência indireta, já por si perniciosa, a bancada cristã é hoje uma das maiores, se não a maior, do Congresso, o que lhes concede, às igrejas como um bloco, orientação política direta nos rumos nacionais.
Não é difícil imaginar, em futuro recente, o Congresso Nacional sendo dominado pelas diversas facções cristãs, com maioria absoluta dos parlamentares composta por sacerdotes ou representantes das igrejas.
O estado laico está, assim, sob ataque feroz, encontra-se sob risco. Imaginar que o voto em “bispos” purificará a política do país demonstra mera ingenuidade sobre a real atuação das igrejas e seus ministros, seres humanos, como os demais, inclusive no que concerne ao apego ao dinheiro e ao poder.
A separação entre divindade e secularidade não surgiu do acaso. O poder secular em mãos da igreja já produziu muito mal no passado. A história é rica em exemplos de guerras e violências extremas originadas do binômio matrimonial religião-estado.
Por conta de um apego formal e simplista ao conceito de democracia, e por uma certa frouxidão moral dos atuais parlamentares e dos eleitores, está-se permitindo que a religião novamente influencie a direção política de um país, o nosso país.
O imperativo de laicidade do estado exige que membros das igrejas sejam afastados da vida pública institucional. Padres, pastores, sacerdotes de toda espécie devem ser considerados inelegíveis e inaptos para as funções de estado. O seu mister está vinculado à pregação da conduta moral em vida como tentativa de salvação da alma após a morte. Pelos motivos ressaltados no início do texto, os sacerdotes e seus representantes são candidatos absolutamente desiguais em relação aos não religiosos, pois podem contar com a manipulação do fanatismo religioso. Um sacerdote afirmar que seu candidato é o candidato de Deus é uma propaganda política desigual, sem paralelos, que desorienta o eleitor e mistifica algo que não deveria ser manipulado de forma alguma: a liberdade psicológica do eleitor de votar no melhor candidato do mundo terreno e não no melhor candidato do paraíso celeste.
Por outro lado, a palavra do senhor, a orientação religiosa, os ensinamentos divinos para esse propósito possuem um terreno próprio no seio do qual o governo não deve, da mesma forma, se intrometer: o templo, o local sagrado. É lá o púlpito de onde o pastor deve dirigir-se ao rebanho.
A César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Que se cumpra essa palavra.

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