segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Palavras, nomes e o politicamente correto



É curiosa essa inclinação que certas pessoas possuem a imaginar que basta uma modificação no nome das coisas para que elas melhorem.
Certa época de minha vida, durante quatro anos, fui policial civil e era batata: toda vez que um novo Secretário de Segurança Pública assumia, os departamentos mudavam de nome ou de sigla. Comecei trabalhando na Seção de Atividades Cartorárias, cuja sigla era SAC. Tempos depois, com a mudança do Secretário, a sala em que trabalhava continuava a mesma zona mas a seção virou Setor de Cartório, SeC, assim mesmo, com a vogal “e” em minúscula, cujo profundo significado escapou-me completamente. É que não fiz MBA em Administração Pública. Por fim, se não me falha a memória, transmutou-se o setor em Setor de Cartório Legal que Funciona de Verdade, SCLFV, ou algo assim. Brincadeirinha.
Talvez esteja exagerando, mas as mudanças eram pra valer pois sempre que alteravam o nome da sala eles mudavam a placa da porta. Acho que se não mudar a placa não dá certo. Deve ser alguma simpatia, sei lá.
Só sei que em cerca de quatro anos trabalhei em vários setores com nomes distintos embora sem sair do lugar. Nenhum deles jamais funcionou direito. Talvez tenha faltado um ou outro detalhe que “eles” não consideram tão importantes, como máquina de datilografia (é gente, sou dessa época), papel e gente.
Atualmente trabalho na Justiça do Trabalho, onde as modificações nos nomes não são tão frequentes mas possuem o seu encanto.
Aliás, essa coisa de não gostarmos de certas palavras vem de longe. Chamamos palavras de baixo calão, ou de palavrão, às palavras que consideramos ofensivas e não dignas de nossa classe ou estirpe. Trata-se de um misto de tradição elitista com arrogância e soberba.
A função da palavra, de qualquer palavra, é transmitir nosso pensamento a outra pessoa. Por meio dela, pretendemos que o outro adquira a mesma abstração que passa pela nossa cabeça. A palavra é, assim, nossa real telepatia.
Quando digo “árvore”, quero que o outro imagine uma árvore em sua cabeça.
Por essa ótica, a grosseria ou a injúria não reside na palavra por si mesma, mas no intuito com o qual a utilizamos, intuito esse que no geral demonstramos através da entonação.
Portanto, se um médico, por exemplo, te diz, de forma natural, “você está com uma pequena infecção na vagina”, isso em nada diferiria se ele utilizasse a palavra buceta, que, em termos abstratos, é a mesma coisa.
Além disso, palavras se modificam com o tempo e o que foi considerado palavrão um dia, no outro poderá não ser mais. Da mesma forma, a palavra que hoje é tida por formal, pode vir a ser convertida em palavra de baixo calão.
Chato, por exemplo, não é mais considerado palavrão, embora seja o nome daquele parasita da virilha que suga sangue, o piolho da púbis, e já tenha sido reputado gravemente ofensivo.
Caralho, por outro lado, que antes designava apenas o mastro principal de uma galera (um barco antigo), hoje é tido por palavrão horrendo. Aliás, a galera saiu do mar e deixou de ser embarcação, vindo à terra numa onda para simbolizar turma ou bando de gente.
Acho que foi essa mesma onda de antipatia por determinadas palavras que inspirou aqueles piolhos de púbis que são os politicamente corretos, que mudam o nome da coisa e... pronto, imaginam que o problema está resolvido. Favela passa a ser comunidade e a galera já tem água, esgoto, luz, segurança, escola e posto de saúde. Beleza, hein?
Desde que o negão virou afrodescendente suas chances na sociedade multiplicaram-se, com certeza. Ou não?
E as mulheres feias se sentirão melhor por serem chamadas de “cosmeticamente diferenciadas”? Sei não, periga elas correrem mais rápido para a cirurgia-plástica.
Sou baixinho e dou uma “agressão física a soco” (porrada) em quem me chamar de “verticalmente prejudicado”. Verticalmente prejudicado é o mastro principal da galera (tradução: baixinho é o caralho).
Os cegos não passaram a enxergar melhor depois que passaram a ser “visualmente desafortunados”, assim como as carecas continuaram lustrosas quando viraram “capilarmente desvantajadas”.
Lembro-me que, antes, os portadores de síndrome de down eram apelidados de mongóis. Isso decorria de seus olhos amendoados, como os das pessoas originárias da Mongólia. De que modo isso pode ser considerado ofensivo? E não é ofensivo para os habitantes da Mongólia que alguém considere ofensivo ser chamado de mongol?
Hoje em dia os pais de pessoas com alguma deficiência física ou mental chamam seus filhos de “especiais”. Ora, minhas filhas são, hum... normais e para mim também são especiais. Qualquer filho é especial para o pai, independentemente de portar ou não deficiência. O que ocorre, na prática, é uma falha na comunicação. Você entende que o filho da pessoa é portador de alguma deficiência, mas não sabe de qual e fica com medo de perguntar e ferir alguma suscetibilidade. Por conta disso, se você tinha alguma contribuição específica a dar, não a dará.
Já imaginaram uma discussão de trânsito entre dois politicamente corretos que não usam palavrões, um branco judeu gordo e um negro velho gay? Seria algo assim (ambos com raiva):
-- Ô, seu afrodescendentão filho da prostituta, que fezes são essas? O senhor não percebeu que a preferência era minha? Prostituta que lhe pariu, só podia ser afrodescendente mesmo.
-- Qual é, seu branco portador de sobrepeso capaz de tampar o poço (tradução: rolha de poço)? Filho da prostituta é você. Não mexe com a minha mãe, hein?
-- E pelo seu modo de ser vejo que, além de afrodescendentão, ainda é homoafetivinho. Era só o que me faltava. Vai pagar o prejuízo, ouviu, ou não me chamo Levy!
-- Ah, eu sabia, pra logo falar em dinheiro só podia ser um indivíduo econômico descendente da tribo de Israel (tradução: judeu pão duro). Vai morrer seco no deserto, ô, hebreu de sobrepeso!
-- Olha aqui, não pense que somente por você ser cronologicamente abastado (tradução: matusalém) eu irei te perdoar, seu esperma doidivanas (tradução: porra louca).
A pergunta é: ficou menos ofensivo de parte a parte? Creio que não.
A ofensa não reside na palavra dita, mas na forma como foi verbalizada. A mais acarinhada das palavras, eu posso dizer “mãe” em tom ofensivo ao, por exemplo, afirmar, de um político corrupto, que eu sei a espécie de “mãe” que ele é para os seus apadrinhados. E posso xingar a mãe de um amigo de forma carinhosa, ao saudá-lo, depois de longo tempo, com um afetuoso “puta que o pariu, que saudade de você, cara”.
Bom, espero que essa onda politicamente correta não vá muito longe e que passemos a tentar modificar as coisas e não seus nomes. Nomes são meras palavras, não significam nada.
Como dizia Cássia Eller, “palavras apenas, palavras pequenas, palavras”.

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