terça-feira, 26 de outubro de 2010

Para o bem geral, política e religião não se misturam


O ser humano é naturalmente gregário e, mesmo antes do surgimento da fala, havia se habituado a viver em sociedade.
Australopitecos viviam em bandos estratificados por uma tênue organização do tecido social, que possuía um chefe, assim como hoje é observado em grandes primatas, como os chimpanzés.
Entre os chimpanzés há um líder do bando, o macho alfa (chefe), que é apoiado por um segmento de outros machos do bando (soldados), que o auxiliam a impôr sua liderança aos demais membros (cidadãos). Aos chimpanzés cidadãos resta apenas a responsabilidade pela criação dos filhotes, catação e extrativismo.
O chimpanzé que aspira ser o novo líder do bando não necessariamente precisa ser o mais forte e nem conquistar a liderança através de vitória em enfrentamentos físicos com o antigo líder. No mais das vezes, basta buscar a simpatia dos componentes do grupo que dão sustentação ao macho alfa, os soldados. Através de afagos e outros agrados, conquista a confiança desse grupo e, reforçado por essa adesão, avoca para si a liderança, expulsando o antigo chefe sem maior violência.
Extraordinariamente, os chimpanzés, com esse comportamento, exercitam um rudimento de política, assim demonstrando que toda sociedade minimamente complexa, ainda que primitiva, precisa de um mínimo de organização política.
Isso se explica pela necessidade que a própria dinâmica da vida grupal impõe aos indivíduos na tomada de decisões que sejam respeitadas pela coletividade. Afinal, inexoravelmente o bem da comunidade implica limitação da liberdade individual. Se cada elemento do corpo social resolver fazer o que quiser, quando quiser, sem planejamento, dificilmente seria possível ao grupo obter o alimento e a segurança de que necessitam.
Política é justamente a ferramenta através da qual o bando, agora civilizado, procura a melhor forma de se organizar no atendimento das necessidades públicas, das demandas sociais.
O ideal mais elevado da política com P maiúsculo é a conquista da justiça social, com o máximo possível de liberdade e igualdade para os indivíduos que integram a dada sociedade.
Aristóteles enfatizava que o ser humano é um animal político, o que é verdadeiro, pois dele se exige que negocie com os demais as condições em que exercitará a vida em sociedade, ou seja, sua cidadania, e isso é o que significa política.
Ao lado dessa natureza política, todavia, o ser humano é também um animal místico.
O misticismo é uma outra face do poder que, de forma similar à política mundana, impõe regras morais limitadoras da liberdade individual como condição de elevação espiritual.
Desde os tempos mais remotos, mesmo antes do registro histórico, o humano, ignorante de quase tudo, como ainda, na verdade, continua a ser, passou a atribuir força sobrenatural aos elementos que testemunhava na natureza. O sol, a lua, a estrelas, os mares, as tempestades, os raios, eram eles próprios, embora hoje se saibam fenômenos naturais, considerados deuses e, por isso, temidos, pois capazes de interferir no destino - entendido como vida e sobrevivência - da pessoa humana.
Temerosa, a humanidade criou ritos de bajulação do divino, com sacrifícios e oferendas, para pacificá-lo, amansá-lo e fazê-lo simpático ao interesse próprio do crente.
Nisso, a humanidade mudou pouco nesses milênios. Até os dias de hoje persiste o medo atávico do sagrado no seio da civilização.
Não por acaso, naquelas sociedades primitivas o líder religioso, o xamã, concentrava em sua própria persona o poder supostamente oriundo da palavra sacra e também da secular. Tanto era a referência dos deuses, como da sociedade.
E não podia ser de outro modo, pois, se aquela pessoa representava o elo entre o céu e a terra, se lhe era possível receber e compreender as intenções do próprio poder divino, como lhe negar a sabedoria sobre os rumos mais adequados a serem perseguidos pela comunidade, muito menos relevante do que os deuses?
E assim a ascendência sacerdotal sobre o grupamento social persistiu longamente pelo tempo, atravessando milênios. Os faraós, e outros monarcas tão vaidosos quanto, chegaram a afirmar, de si próprios, não somente terem sido escolhidos pelos deuses para reinar, mas com frequência que eles próprios eram deuses.
De uma forma geral no passado, até não muito tempo atrás na história, os reis atribuíam a posse da coroa a mandamentos sobrenaturais, a desígnios de Deus. Eram reis por vontade divina.
O intrincamento entre poder terreno e religioso é tanto que as próprias estruturas institucionais são similares. Nesse sentido, o papa da religião católica, por exemplo, é uma representação do rei dos católicos, com direito a castelo (o Vaticano), coroação (assunção papal), nobreza (cardeais e bispos), poder absoluto de legislar e interpretar a legislação (o direito canônico), além de vassalos (os fiéis).
Até o final da Idade Média, a interferência da religião nas coisas do Estado era total. Na maioria dos países muçulmanos, essa interferência plena ainda ocorre nos dias de hoje. Isso porque o Corão, ao contrário da bíblia judaico-cristã, é um livro sagrado que regula todos os aspectos da vida do ser humano, inclusive a administração do Estado. O resultado disso é a possibilidade de surgimento, como têm surgido com velocidade preocupante, de teocracias autoritárias, apesar de toda a propalada modernidade cultural e avanços científico e tecnológico.
Com a evolução da civilização, houve um natural e progressivo distanciamento daquele medo original das coisas da natureza.
A ciência jogou luz sobre a escuridão da ignorância e os seres humanos perceberam que os astros e os demais fenômenos da natureza são explicáveis racionalmente, não se tratando cada um deles de um deus ou ainda de uma manifestação raivosa do divino.
A partir do avanço científico, testemunha-se uma equivalente redução do poder dos sacerdotes sobre a vontade das pessoas, fundado que era no medo e na incerteza sobre o além-vida. Medo que aos poucos é mitigado pelo uso da razão, que amplia a experiência crítica do indivíduo.
Esse fatores históricos conduziram à implementação do laicismo.
Nos países do ocidente, a partir da constatação dos excessos praticados pela intromissão indevida das diversas religiões nas questões de Estado, provocativos de acirramentos político-religiosos e de insegurança e terror social (representado, por exemplo, pela inquisição), a sociedade humana civilizada entendeu que era fundamental e salutar a separação entre Estado e religião. Adotou-se o laicismo, fundou-se o Estado laico, desapegados das estruturas religiosas arcaicas. Em contrapartida, como compensação pela perda de poder, as religiões receberem a neutralidade do Estado no que concerne à liberdade da prática religiosa por seus cidadãos. Como outra compensação, isenção fiscal. Em grande parte dos países, igrejas não pagam tributos.
O Estado laico pretende conferir valor e materialização a experiências sociais que, até então, pertenciam quase exclusivamente ao mundo das ideias, como a liberdade de consciência e de opinião, igualdade entre cidadãos e democracia. Tudo isso era pretensão da filosofia laica que dificilmente seria alcançada em sociedades submetidas ao obscurantismo religioso, sempre sedento de opressão.
Entretanto, embora seja indiscutível que o temor reverencial nutrido pelas pessoas em relação aos deuses tenha sido atenuado à medida do implemento da razão, ele ainda existe. Justamente em função desse medo latente, o discurso religioso na política deve ser evitado.
O discurso político proferido por um sacerdote é desigual em relação ao discurso do profano, gerando um desequilíbrio na política que desfavorece os ideais da civilização.
É desigual porque eivado de força sobrenatural, transcendental.
Um sacerdote ou uma religião desonesta não hesitará em atribuir a Deus os seus próprios interesses escusos, como, aliás, não faltam exemplos modernos, notadamente no campo da arrecadação de dinheiro.
Indubitável que o sacerdote é também um cidadão e, como tal, possui direito à liberdade de opinião e de expressão. Porém, isso somente é válido fora do púlpito, em sua condição de cidadão, jamais misturando o discurso político com o de sacerdote. Do púlpito sagrado, compete ao sacerdote respeitar os limites do laicismo, não lhe sendo permitido recomendar ao crente que adote essa ou aquela corrente político-partidária, esse ou aquele candidato.
Ao arrogar-se o direito de recomendar uma candidatura, por exemplo, cujo âmbito é político e não sagrado, o sacerdote está conferindo ao político, por reciprocidade, o perigoso direito de adentrar pelo terreno religioso.
Cabe indagar, por exemplo, se seria ético o político, utilizando de sua prerrogativa de parlamentar, recomendar aos seus partidários que se afaste de determinada religião por ser perniciosa.
Indo um pouco mais longe, ao misturar política e religião, o sacerdote pode estar autorizando que o agente político proponha uma legislação específica contrária a essa religião, sob o fundamento de interesse público, por exemplo.
Nossa Constituição atual desautoriza qualquer espécie de restrição à liberdade religiosa. Basta, porém, uma emenda constitucional para modificar esse status.
Pau que dá em Chico, dá em Francisco, já sabiamente afirma o velho ditado.
Outrora, Estado e religião se confrontaram violentamente, sempre com prejuízo para a sociedade.
Sacerdote se imiscuir na política, seja como cabo eleitoral, seja como candidato, é algo anacrônico, démodé, ultrapassado desde a Idade Média pelo laicismo. Seria melhor para todos mudar o rumo dessa prosa ou proselitismo.

Mantenha-se o combinado já há muito tempo: sacerdote fala de Deus e político fala do Estado, um não fala do outro e ficam todos em paz.

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